quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O Espiritismo e a Massa Crítica Brasileira

Quando surgiram no século XIX na Europa e Estados Unidos, os fenômenos mediúnicos atraíram todo tipo de pessoas. Desde curiosos, farsantes e aproveitadores até pesquisadores amadores e outros mais graduados. Há inclusive casos ilustres de indivíduos renomados que se detiveram nesse assunto realizando abordagens mais sérias. Alguns deles foram o filósofo francês Henri Bergson, o filósofo e psicólogo norte-americano William James, o francês ganhador do Nobel de fisiologia Charles Richet, o físico inglês William Crookes, entre outros. O próprio Kardec, responsável pela codificação espírita mediante um método científico, foi um respeitável pedagogo francês com um vasto conhecimento em diversas áreas tendo estudado no Instituto Pestallozzi. Portanto, quando se fala sobre Espiritismo neste período são esses os nomes que surgem, bem como o de outros diversos pesquisadores que trabalharam em questões empíricas dos fenômenos mediúnicos e na parte conceitual espírita. Os médiuns figuravam em segundo plano, conhecidos hoje por terem sido citados nas obras dos autores mencionados.
No Brasil ocorre justamente o contrário. Por diversos fatores os médiuns adquiriram aqui uma aura de importância tal que encobriram a divulgação de qualquer tentativa mais séria de pesquisa sobre o Espiritismo. Enquanto no período da codificação havia um critério rigoroso para filtrar um número enorme de mensagens de médiuns proveniente do mundo inteiro, comparando seus conteúdos a fim de extrair pontos comuns para a formulação de novos conceitos, em solo brasileiro basta afirmar que uma mensagem é “ditada” por algum espírito para ser tomada como verdade inconteste. Se por um lado a proliferação de uma série de romances mediúnicos a partir das décadas de 50 e 60 ajudou a disseminar o Espiritismo no Brasil, por outro a ausência de uma análise hermenêutica comprometeu drasticamente seu conteúdo.
Atualmente é comum a divulgação de idéias e teorias científicas sob a forma de livros romanceados, onde ninguém tem dificuldade em diferenciar o que é ficção ou o que é realidade. Todo mundo entende que se referir ao quantum como um “pacote de energia” é um recurso didático e uso de analogia. Além disso, ninguém imaginaria, ou admitiria, serem utilizados em cursos de graduação de Física livros como “Alice no País do Quantum”, por exemplo. Já entre os espíritas, entretanto, parece não haver diferença alguma entre o romance e a linguagem técnica, científica, uma vez que se toma uma descrição romanceada dos fenômenos mediúnicos ao pé da letra, como se fosse a mais apurada verdade, tornando um especialista em Espiritismo o leitor destas obras. Ainda mais se elas vierem assinadas por espíritos já desencarnados. Quem muito soube se aproveitar deste fato foram algumas editoras que descobriram um novo filão. Lançar obras mediúnicas, legítimas ou não, é lucro garantido.
São comuns que idéias surgidas dentro de um contexto ao migrarem-se para outro sofram algumas transformações. Mas o Espiritismo surgido na Europa alcançou uma configuração completamente outra no Brasil. Um dos exemplos é a inquestionabilidade que alcançaram alguns médiuns por aqui. Várias são as explicações possíveis para isso. Eu arrisco uma relativa ao momento contemporâneo. Normalmente o Espiritismo é acusado de elitismo por possuir um grande contingente de membros com educação superior. Concordo. O Espiritismo exige massa crítica e mentalidade científico-filosófica para que possa ser codificado por cada um. Com isso não se quer barrar aqueles com menor grau de instrução. Mas se quer fazer do Centro Espírita local de debate de idéias e provocação para a educação continuada. Para um país que sofreu um fenômeno recente do aumento de faculdades, ainda é extremamente baixa a parcela da população com terceiro grau. Isso é prejudicial para cada indivíduo, é prejudicial para o país e é prejudicial para o Espiritismo, que continua a ser em nosso território uma pálida sombra do que poderia realmente ser.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Religião Espírita

Quando nos primórdios da humanidade o ser humano foi concebendo um mundo independente do seu, separando uma unidade interior e outra exterior, constituindo sua psique e fazendo autopercepção, passou a atribuir aos fenômenos externos certas divindades. Este exercício tinha como função ordenar o mundo e conferir certo sentido a ele. Esta atividade era a gênese do pensamento religioso, que conferiu aos indivíduos noções de causalidade, tempo e espaço, desnaturalizando alguns dos imperativos categóricos kantianos. O pensamento religioso não é uma etapa no desenvolvimento da humanidade que é peculiar ao “selvagem” e sobreposta pela ciência. É a forma de pensamento que reunindo as causalidades que o cercam e refletindo a condição humana, busca conferir algum sentido para a existência, combinando os “rumos” do Cosmos com os propósitos de cada vivência particular. Por isso, por mais refinadas que sejam as concepções de causalidade, o pensamento religioso nunca irá desaparecer, uma vez que é sempre a busca de um propósito para a vida no contexto em que esta se insere, nunca cessando de questionar quem é o homem.
Visto por este prisma é fácil perceber que a igreja surgiu muito tempo depois, centralizando sua estrutura em torno de um núcleo de interpretação que é transmitido por uma série de estratégias aos seus membros participantes. Todas as críticas que intelectuais de diversas áreas dirigem hoje para a religião deveriam ser transferidas para o fenômeno das igrejas, pois são elas que limitam o livre pensar,além de criar e impor comportamentos discrepantes com a realidade. A religião é forma de pensamento que independente de igreja qualquer continuará a existir.
O Espiritismo não se constitui em igreja, mas sustenta-se na ciência, filosofia e religião. Uma das originalidades da codificação espírita empreendida por Kardec foi ter demonstrado que as relações entre os polissistemas material e espiritual são passíveis da análise crítica e da elaboração de leis, fato que proporcionou a justificativa de uma fé racional. Por isso a ciência e a filosofia têm um papel muito importante, fornecendo ao espírita uma concepção mais adequada do mundo e da vida, sustentando para que o pensamento religioso possa melhor adaptar a existência singular de cada um em harmonia com o conjunto cósmico.
Apesar de tudo é fácil compreender porque muitos ainda enxergam o Espiritismo de uma forma desvirtuada e em semelhança com igrejas. Grande parte desta culpa é dos próprios espíritas, que com mentalidade de igrejas diversas e pensamento retrógrado e engessado, fizeram do centro espírita uma igreja. Basta ver a imposição de interpretações que alguns promovem ou os ritos de casamento que outros começam a popularizar. Contra isso, é necessário afirmar o centro espírita como um espaço diferenciado que proporcione ao seu freqüentador referências de ciência, filosofia e religião alcançadas pela humanidade, cuja principal tarefa é ensinar cada um a pensar. Tudo que é ensinado tem de ser justificado, inclusive os princípios espíritas alcançados por Kardec pelo método científico. Isso sendo feito, cada um estaria livre e capaz de contextualizar esses ensinamentos na sua vida, sendo que aí, o número de religiões desejável seria o número de pessoas que existissem.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

À Espera de um Debate

Têm sido comuns as obras em favor do ateísmo e contrárias às religiões de modo geral. Evidente que isto contribui para um pluralismo de idéias e um debate mais profícuo acerca da contemporaneidade. Dentre os vários livros lançados um ganhou bastante destaque tornando-se best-seller em alguns países: Deus – Um Delírio, do zoólogo Richard Dawkins. Li com bastante atenção este livro e confesso que pensei muito tempo se deveria ou não menciona-lo neste espaço. Por mais humilde que seja esta coluna lançar qualquer luz sobre Dawkins é promover justamente o que ele deseja: estar sob os holofotes. Para quem tem acompanhado um pouco de sua trajetória nos últimos anos já sabe que entre a exposição à mídia com busca pela popularidade e o comprometimento sério com a atividade científica ele já parece ter deixado claro sua posição. Não que seu livro seja totalmente ruim. Pelo contrário. Há pontos bastante importantes, assim como diversos outros descartáveis. Lastimável é a forma como conduz sua narrativa, negando durante o processo o seu próprio objetivo de fornecer uma alternativa científica contra a religião. Se os usos da ironia e do deboche fazem de sua leitura mais agradável, interdita qualquer reflexão mais séria e realmente científica sobre ela. Mas parecem ter atendido às expectativas do autor, sendo que ele é citado hoje em algumas listas como um dos maiores intelectuais vivos da humanidade. Cada um tire suas próprias conclusões. Vamos à obra em questão.
De positivo Deus – Um Delírio rompe com a falsa idéia de que questões religiosas são intocáveis, sendo que em inúmeros casos essa imunidade contra opiniões camufla uma série de crimes e atitudes estapafúrdias em nome de alguma divindade. Assim, o autor aproxima o fundamentalismo cristão norte-americano ao talebã afegão, demonstrando como a atual mentalidade religiosa nos Estados Unidos compromete muito dos princípios democráticos construídos na sedimentação de sua república, inibindo a liberdade de imprensa sobre certos assuntos. Além disso, Dawkins acerta quando apresenta um ateísmo humanista, colocando como mesmo a pessoa não possuindo uma religião várias são as referências para que possa conduzir-se adequadamente na convivência com os outros. Isto anula a sentença de Raskolnikov de que se Deus não existe tudo é permitido. Haja vista o exemplo de ateus ilustres, como Bertrand Russel, por exemplo.
A obra de Dawkins se mostra falha em diversos aspectos. Primeiramente busca se utilizar da autoridade científica do autor para legitimar suas idéias, como se tudo o que estivesse escrito fosse de caráter científico. Um absurdo! No único capítulo em que se apresentam evidências científicas para uma probabilidade muito alta da não-existência de Deus, são utilizadas idéias que, longe de serem consenso na comunidade científica, são, pelo contrário, bastante controversas. Dawkins adentra um campo que, sendo desconhecido por grande parte das pessoas, é possível se falar qualquer coisa que será tomada pelo leigo como verdade. Outro erro capital do zoólogo é não separar religião de Igreja, de forma que coloca todas as crenças no mesmo balaio (não vou me estender neste ponto por que isso será assunto de uma próxima crônica). Também é gritante seu desconhecimento de Antropologia, sendo que já foram demonstradas várias pesquisas de como a religião pode condicionar o pensamento das pessoas de modo a controlar suas reações e disposições. É claro que um mundo em que as pessoas adotassem valores humanistas seria muito melhor. Mas seria inocência pensar que as pessoas simplesmente trocariam de crenças como quem troca de roupa. Outra falha antropológica foi ignorar qual função representou o pensamento religioso na gênese da humanidade.
De modo geral o Espiritismo permaneceu imune a todas as críticas (como sempre permanece nas críticas religiosas). Desde Laplace (que teria respondido a Napoleão Bonaparte que não tinha mencionado Deus em uma de suas obras por não ter precisado desta hipótese) muitos propagam que a ciência é a atividade humana num mundo em que Deus não existe. O espiritismo não comunga desta idéia e fornece argumentos interessantes para tanto. Com isso não se quer afirmar que as teses espíritas estão acima de qualquer crítica. Pelo contrário. Lamenta-se que poucas pessoas mencionem o Espiritismo na forma adequada de seus princípios. No final do século XIX o médico e pesquisador russo Aksakof escreveu mais de 700 páginas que resultaram na monumental obra “Animismo e Espiritismo” em resposta as críticas do filósofo alemão Eduard von Hartmann. No prefácio Aksakof se dizia contente por finalmente ter tido a oportunidade de ler e refletir acerca de críticas bem elaboradas ao Espiritismo por pessoas externas a ele. Oportunidades como essas são raras. Primeiro porque normalmente as críticas religiosas ignoram o posicionamento espírita. Segundo porque, quando o fazem, o fazem com um desvirtuamento completo das concepções espiritistas.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Espiritismo e Democracia

O Espiritismo defende alguns princípios transculturais que promovam em amplo sentido defesa, valorização e dignificação da vida. Decorrentes destes emergem alguns valores que devem ser protegidos para que os indivíduos no conjunto das convivências mútuas possam exprimir sua singularidade compondo seus comportamentos e hábitos harmonicamente no contexto em que transitam. Liberdade, responsabilidade e direito integral à vida são algumas das exigências mínimas a serem contempladas para que seja satisfeita uma dinâmica móvel e equilibrada de inter-relacionamento. Estas são melhores expressas em governos democráticos, onde as trocas entre o poder dirigente e as exigências e anseios da população são realizadas de tal modo que haja construção de espaços diversificados e pluralistas com uma base comum de sustentabilidade para a reciprocidade social. Por este motivo o Espiritismo posiciona-se fortemente em favor da democracia como a melhor forma de governo, sendo a que permite um exercício mais pleno da existência singular de cada indivíduo no meio em que está inserido.
O filósofo austríaco Karl Popper também era forte defensor da democracia, colocando que a pergunta essencial em filosofia política, contrária ao questionamento de Platão sobre quem deveria governar, seria qual a melhor forma de governo de modo a evitar que mesmo governantes incompetentes e corruptos causassem os menores danos possíveis? Neste caso a democracia, através de suas instituições, deveria controlar e domesticar o poder público, promovendo o diálogo necessário para a promoção construtiva do espaço público. Sob este aspecto é gritante e perceptível que não se vive no Brasil uma democracia. No máximo uma democracia governada, nunca governante.
É fácil e cômodo atribuir os problemas do país aos ocupantes dos cargos políticos, mas de acordo com o critério de Popper a efetivação de um Estado democrático é responsabilidade de todos os cidadãos, sendo participativos e exigentes quantos aos seus direitos e, principalmente, cumprindo com seus deveres. Manifestar-se criticamente contra medidas antidemocráticas e comprometedoras é papel primordial da população, exercendo esta função dentro dos trâmites legais, sem desvirtuamento de caráter e sem proporcionar massas de manobra para aproveitadores. Os Estados Unidos sabiam isto desde a fundação de sua república, motivo pelo qual Tocqueville, que lá estudou a democracia, atribuiu uma importância fundamental à liberdade de imprensa em território norte-americano, onde opiniões alternativas poderiam ser consideradas e ouvidas garantindo uma diversidade de expectativas e respostas democráticas a elas, bem como poderia haver um controle dos excessos do poder público. Atualmente, mesmo em países como o Brasil, a possibilidade de uma reivindicação ou reclamação está ao alcance de um e-mail. É triste que um país que possua tantos espíritas manifestos tenha uma consciência e cultura política tão fraca e descompromissada. Talvez isto seja reflexo da mentalidade religiosa ocidental, onde se preocupa demasiadamente com questões metafísicas abstratas infelizmente desvinculadas da área primordial de ação para o espírito encarnado: o contexto concreto.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Rotina e Inovação

O objetivo do espírito encarnado é conviver com culturas, pessoas e locais diferenciados de forma a poder construir conhecimentos e revelar a si mesmo, manifestando e/ou aprofundando questões não realizadas em encarnações pretéritas. Portanto, a função da reencarnação é fundamentalmente proporcionar conhecimento de si, dos outros e do mundo. Deste modo, o ideal seria que cada indivíduo aproveitasse ao máximo os momentos novos, a diversidade e as experiências vividas para agregar saberes e transformar comportamentos. Cada vez que penso neste fato não deixo de me lembrar do livro “A Invenção de Morel” do argentino Bioy Casares. Para quem não conhece o resumo da estória aí vai: um cientista cria uma máquina capaz de não somente apreender a imagem das pessoas, como também seus sentimentos, sendo capaz de reproduzi-los. Assim, momentos bons podem ser permanentemente revividos, sendo que o custo da exposição contínua à máquina acaba por ser a própria morte. Se me lembro desta obra é porque penso o quanto as pessoas se esforçam por construir rotinas seguras, buscando reviver sempre as mesmas sensações querendo eternizar-se nas repetições, onde as conseqüências, como no romance de Casares, é a própria morte. Não a morte literal, mas aquela morte para o novo, que acaba por significar, em certo sentido, a “morte” do espírito.
Infelizmente para alguns, mas felizmente para os objetivos da existência, “a repetição não gera igualdade”, como colocou o espírito Antônio Grimm (psicofonado pelo médium Maury Rodrigues da Cruz). Para aqueles que querem construir rituais semanais de forma a alcançar as mesmas sensações a crise é inevitável, uma vez que cada momento é único e os desdobramentos são singulares. Mesmo repetindo as mesmas ações e comportamentos os resultados acabam por ser sempre diferenciados, pois o contexto é sempre dinâmico. E se não aproveitamos esta dinâmica da mudança, não só sofremos e nos desapontamos como nos impedimos de melhor nos conhecer e nos expressar face às incertezas e os inesperados do cotidiano.
O oposto também é pernicioso, uma vez que uma rotina mínima garante o cumprimento de tarefas que se renovam e se impõe para nós todos os dias. A geração nascida na década de 80 teve em muitos casos suas necessidades satisfeitas pelos pais, de modo que a única coisa que sobrou foi a rotina do ócio. Como o espírito é sensibilizado para o novo e neste caso este lhe foi usurpado, muitos passaram a correr atrás das novidades, vivendo do efêmero, do fugaz e dos desafios aos limites, transgredindo regras e valores. Daí a banalização da violência na juventude atual, o aumento do consumo das drogas, o apelo sexual, entre outras questões fundamentalmente desconstrutivas.
Neste caso, como na maioria, percebe-se o meio termo como o bom senso. Saber construir uma organização diária de modo a satisfazer as necessidades materiais e existenciais da vida é imprescindível. Assim como estar apto a se renovar todos os dias enfrentando criticamente os novos desafios, recombinando saberes anteriores para construir conhecimentos originais e diferenciados para promover transformações significativas. Novamente citando o espírito Antônio Grimm (psicofonado pelo médium Maury Rodrigues da Cruz): “Os espíritos ensinam, através da Doutrina dos Espíritos, que a casa espírita, na visão curricular construtivista, não poderá sensibilizar os indivíduos à procura da novidade, mas deverá fortalecer curricularmente em cada um o enxergar, o alcançar, em profundidade, a construção do novo”.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Espiritismo e Expressão do Ser

O espírito sendo portador do conhecimento, posição que defende o Espiritismo, alcançou no ser humano um equilíbrio cognitivo dinâmico e móvel com o meio natural que o permitiu expressar uma autoconsciência e possibilidade de combinação e recombinação desenvolvendo através da linguagem uma maior interação com os outros constituindo a cultura. Este equilíbrio do aparelho cognitivo inter-relacionado com uma variação estável dos sentidos foi o que melhor permitiu ao espírito se manifestar no corpo humano de forma a melhor construir e exercer seus conhecimentos. Basta imaginar que se nossa condição habitual fosse aquela análoga ao estado entorpecido induzido por substâncias alucinógenas dificilmente teríamos alcançado a condição que alcançamos.
Diante deste quadro, é possível reconhecer um trabalho lento e gradual do espírito na matéria num exercício de leis naturais que num processo evolutivo proporcionaram a condição humana. Esta construção é, portanto, essencialmente natural, onde o espírito construiu seu livre-arbítrio podendo manifestar originalmente suas potencialidades. Quando em face da cultura de modelos, fortemente prescritiva, o indivíduo falha em manifestar sua própria individualidade, naquilo que ela tem de única e também de universal, surge uma crise. Nestas situações costuma-se romper com o equilíbrio natural procurando alternativas para a satisfação. As mais comuns costumam ser as drogas, que estimulando algumas substâncias internas do organismo proporcionam uma sensação de bem-estar. Porém, esta sensação é apenas um contraste da inaptidão do indivíduo em expressar-se plenamente, utilizando do alucinógeno como um paliativo fugaz e efêmero das frustrações existenciais.
Curiosamente as drogas se popularizaram entre as massas do ocidente nas décadas de 60 e 70 pelos movimentos sociais de contracultura que alardeavam uma integração maior com a natureza. Com isso trouxeram elementos descontextualizados de outras culturas, utilizando de plantas alucinógenas como a possibilidade de uma imersão interior. Nada absolutamente mais falso. Uma vez que a droga promove uma desarmonização do organismo e uma falha deste em processar as informações do meio, elas contradizem fortemente sua justificativa de integração com a natureza, gerando, pelo contrário, uma desvinculação com a mesma. E não foram poucos os movimentos religiosos que pregavam uma necessidade de abertura das percepções por meio destas substâncias, sendo estes movimentos também responsáveis por sua propagação. O encontro interior de cada um consigo mesmo é um processo crítico, reflexivo, ponderado e permanente, sendo que estas premissas excluem de antemão qualquer possibilidade da utilização das drogas para tal objetivo.
Hoje as drogas estão disseminadas nos centros urbanos tendo como uso a satisfação imediata. Já não se parece mais querer utilizá-la para uma aparente integração com a natureza, mas propositadamente como uma forma de afastamento dela. Talvez a saída mais coerente desta crise seja o próprio exercício natural do ser com o contexto ambiental e sócio-cultural em que está inserido, onde o espírito possa alcançar sua voz e toda capacidade de expressão. Como? Pelo exercício pleno, e não mascarado, de suas capacidades: na instrução, educação, leitura de mundo, das pessoas, das coisas, na convivência com a diversidade, na conquista das amizades, enfim, na construção do amor – não o amor enquanto conceito desfigurado e "sentimentalóide", mas na sua vinculação imprescindível e necessária com o conhecimento.