São comuns a contraposição e a divergência entre fé e ciência, sendo que um olhar mais detido e apurado pode não somente encontrar pontos comuns entre ambos, como reconhecer seu caráter de complementaridade e mesmo de indissociabilidade. Um pouco da evolução do conhecimento científico pode ajudar a compreender a necessidade desta evolução no âmbito da fé.
Quando passou a sedimentar-se como visão de mundo bastante eficaz, a ciência se baseava fundamentalmente em observações, onde cabia ao pesquisador tornar-se o mais imparcial quanto possível, servindo tão somente como registrador dos fenômenos observados. Destes registros surgia uma interpretação posterior baseada em linguagem técnica e, por vezes, matemática. Já em meados do século XIX passaram a surgir publicações interessadas nos mecanismos de funcionamento da ciência, bem como os primeiros cursos institucionalizados de epistemologia. Com isso, mudou-se um pouco a visão imperante sobre o método científico e começou a se criar uma nova abordagem. Nesta, o cientista não faria simplesmente observações, mas as faria ancoradas em hipóteses elaboradas anteriormente. Assim, a observação seria um recorte a partir das hipóteses do cientista, buscando evidências para comprová-la ou refutá-la. As hipóteses iriam direcionando o caminho da pesquisa, sendo reelaboradas conforme a necessidade das conclusões encontradas. Já no século XX ocorre nova transformação no pensamento científico, onde as grandes descobertas deixam de ser provocadas na observação do mundo dos fenômenos e passam a emergir da meditação sobre aspectos racionais de teorias anteriores. Há uma inversão da prioridade do realismo enfatizando-se o racionalismo, onde grandes teorias surgem pelo exercício da abstração e da imaginação e menos por questões concretas e observáveis. Não que a análise do mundo exterior em si não tenha importância alguma, mas ele vai servir para provocação e estimulação de questões abstratas, cuja consistência lógica vai buscar submeter seus resultados aos objetos do real, inovando-os e alçando-lhes aspectos antes inacessíveis. Portanto, as hipóteses vão surgir como sínteses e não mais como elaborações desconexas. Como exemplo, temos Einstein questionando o princípio da simultaneidade do tempo newtoniano e alguns matemáticos questionando o postulado das paralelas na geometria euclidiana, cujas descobertas proporcionaram feedback no mundo do real e os renovaram, permitindo enxergar pontos antes obscuros à simples observação.
De acordo com esta abordagem inicial pode-se fazer um paralelo com a fé. Se esta não fosse congelada por uma visão dogmática, centrada em dogmas e revelações seguiria o mesmo caminho da ciência, uma vez que ambas possuem uma inter-relação fundamental que será comentada adiante. Inicialmente a fé surgiu, ou assim se imagina que tenha surgido, por observações concretas de alguns fenômenos. Ela derivava da observação direta. Posteriormente, aquele que mantinha fé fazia hipóteses sobre o mundo, cujos eventos poderiam ou não comprovar sua fé, transformando-a e obrigando-a a se renovar. Atualmente, seria o tempo da fé se deter em questões lógico-abstratas que poderiam elucidar questões do real ainda não possíveis de serem esclarecidas através de evidências, mas bastante plausíveis pelo rigor filosófico. Partindo deste princípio não se deixa de perceber uma nítida coincidência entre as trajetórias da fé e da ciência. De onde surge este acontecimento? Do simples motivo da fé consubstanciar a atividade científica, onde é uma transformação da fé que possibilita uma transformação da ciência. A grande dificuldade surge quando se fala em fé religiosa e se tenta atribuir a ela caracteres distintivos da fé científica. E esta questão sedimentou-se num senso comum que se imiscuiu mesmo nas mentes mais privilegiadas. Como exemplo, citemos novamente Einstein. Mesmo um cientista de tamanha envergadura e com ideais tão nobres ainda era capaz de fazer concessões à idéia de tradição.
Sendo o núcleo científico filosófico ele se sustenta em uma fé. Basicamente na fé de que há uma ordem no Universo e de que o entendimento humano é capaz de compreendê-la. Porém, graças ao sucesso do método científico e a comprovação das hipóteses através de evidências concretas deixou-se de refletir as premissas científicas organizadas pela fé. E esta reflexão passou despercebida, pelo menos pela grande maioria, quando Einstein enunciou a Teoria da Relatividade que a rigor não possuía evidência nenhuma a não ser a consistência lógica de seus postulados. Inicialmente sua aceitação, para aqueles que tivessem essa coragem, era simplesmente uma posição de fé. Mas uma fé sustentada pela razão. A fé religiosa funciona da mesma maneira. Quando nos primórdios da humanidade se observavam fenômenos climáticos e a eles se atribuíam divindades começava a surgir uma concepção de mundo ordenada. Houve dinâmica da fé e as concepções religiosas foram se alterando. A grande crise foi quando surgiram igrejas buscando o monopólio da explicação religiosa, congelando a fé em dogmas e submetendo-as às massas através de aceitação passiva. Criou-se a idéia de que surgiam na humanidade figuras extraordinárias que traziam conhecimentos sagrados por via da revelação e que não podiam ser questionados, mas aceitos por ato de “fé” e transmitidos sob a forma de tradição. Esta mentalidade instaurou-se tão fortemente que atualmente cientistas que conduzem suas pesquisas com rigor metodológico, são altamente críticos na discussão de seus resultados, mas quando abordam questões religiosas sucumbem a dogmas e aceitações acríticas, ignorando que sendo a fé que ampara ambas as atividades, a postura crítica, reflexiva e racional diante delas deveria ser a mesma.
Desta percepção é possível avaliar uma das grandes conquistas do Espiritismo e um dos seus pontos originais: a fé racional. A rigor a fé é por excelência racional, uma vez que é a possibilidade de estender o olhar para pontos obscuros a partir de conhecimentos já consolidados. O que Kardec fez com bastante competência foi ressaltar esta posição com argumentações lógicas. Foi revolucionário ao propor que sendo o polissistema espiritual passível de verificação racional e análise crítica dentro de um quadro de leis naturais e não extraordinárias, a fé resultante deveria ser racional. Toda crença poderia e deveria ser justificada, estando aberta a crítica, ao diálogo e a influência de novas descobertas. Viveu no tempo em que começavam a formular hipóteses para as observações, fazendo o mesmo. Colhendo mensagens mediúnicas ao redor do mundo todo descartava ou reforçava suas hipóteses, procedendo de forma rigorosamente científica. Mas já começava a precipitar uma nova epistemologia quando enfatizou questões contrárias ao senso comum que ainda não poderiam ser provadas por evidências, mas sim com a argumentação crítico-racional. Daí explicitou que a fé só poderia existir se oportunizasse menor resistência do real, portanto construída sob a égide da razão e da crítica. Contemporaneamente, este ponto é fundamental para o Espiritismo. Assim como Einstein na gênese de suas teorias não encontrava evidências concretas para comprová-las servindo-se apenas do suporte da consistência lógica, o Espiritismo ainda não encontra instrumentos adequados para comprovar imortalidade da alma, reencarnação, mediunidade e outros pontos. Mas centrando-se criticamente em pontos morais e naturais da existência, desdobra conteúdos lógicos que possibilitam a crença racional nessas teses, além da possibilidade de enxergar pontos antes invisíveis ao olhar comum.
Concluindo, se quer colocar que não há uma grande diferença entre fé e ciência, onde a primeira estrutura a segunda. E por este princípio não deveria haver diferença ente fé científica e fé religiosa, não podendo se atribuir características específicas para cada uma delas, uma vez que a idéia de fé tem uma essência que não se modifica conforme a atividade que sustenta. A grande confusão surge pelo senso comum de fé, transmitida basicamente por algumas igrejas e distribuídas por todos os segmentos da sociedade. O Espiritismo objetiva trabalhar criticamente o conceito de fé, para romper com a crença comum de sua aceitação passível e originada na idéia de revelação, promovendo a auto-emancipação do homem pelo conhecimento, onde cada um possa defender aquilo que acredita em princípios lógico-racionais, aberto a mudanças por constatação de eventos ou pelo diálogo construtivo.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário